7º Tabelionato de Notas - Dr. Angelo Volpi Neto

Aquisição de imóveis, passivos ambientais e suas repercussões

Aquisição de imóveis, passivos ambientais e suas repercussões

·        Angelo Volpi Neto

Aquisição de imóveis e obrigações "propter rem" relativas a danos ambientais. Princípio da concentração na matrícula imobiliária, cautelas aquisitórias e escritura pública.

1) Noção geral - Obrigação "propter rem"

Caio Mário da Silva Pereira, após fazer um retrospecto, da evolução histórica do instituto, situa-o:

"... no plano da obrigação acessória mista. Quando um direito real acede uma faculdade de reclamar prestações certas de uma pessoa determinada, surge para esta a chamada obrigação propter rem. (...)".

"... A obligatio propter rem somente encorpa-se quando é acessória a uma relação jurídico-real ou se objetiva numa prestação devida ao titular do direito real, nesta qualidade (ambulat cum domino). ... Ela é uma obrigação de caráter misto, pelo fato de ter como a obligatio in pernsonam objeto consistente em uma prestação específica; e como a obligatio in re estar incrustada no direito real."

Vale complementar com Silvio de Salvo Venosa, que leciona:

"A terminologia bem explica o conteúdo dessa obrigação: propter, como preposição, quer dizer "em razão de", "em vista de". (...) Trata-se, pois, de uma obrigação relacionada com a coisa.

Tendo em vista que a obrigação propter rem apresenta-se sempre vinculada a um direito real, como acessório, sua natureza pode ser considerada mista. Nessa espécie deveras singular de obrigação, a pessoa do devedor pode variar, na dependência da relação de propriedade ou posse que venha a existir entre o sujeito e determinada coisa."

Aglutinando-se as lições de escol, bem se vê que a "obrigação propter rem" embora atrelada ao direito real, cinge-se a uma relação obrigacional vinculada à coisa (acessória a esta), que se mantém estável mesmo aos sucessores do titular originário (portanto, que persiste existir, eficazmente, eis que seu liame é com a coisa). Aparentemente sugere liberação do titular anterior, mas tal sorte não há - sobremaneira no foco deste trabalho (jaez ambiental e imobiliário) porque, de regra, em responsabilidade ambiental, adota-se a teoria objetiva, independe de culpa.     

E, o que importa é ter ciência e consciência de que a obrigação "propter rem", embora derive ou esteja ligada ao direito real (principal), a este patamar ou grau não se eleva, porque lhe é acessória e se mantém como "obrigação" que, se não impõe um mandamento de fazer ou não-fazer; acaba por restringir ou traz uma limitação à propriedade e ao titular do domínio.   

 

2) Noção geral - dano ambiental

A tutela ao meio ambiente encontra respaldo em normativos internacionais (ONU - PNUMA, etc.) e pátrios (CF, art. 225; lei 9605/1998; Código Florestal, etc.) e existem doutrinas, normas e jurisprudências para os mais variados casos, porém, não se perderá de vista o foco deste estudo, o dever de indenizar ligado à propriedade, o dano ambiental como "obrigação propter rem". Adotando-se como "conceito standart", o dano ambiental ou ecológico pode ser entendido como a lesão ao meio ambiente causada por ação ou omissão de qualquer pessoa, física ou jurídica, de Direto privado ou público.

Em sua tese de livre-docência, Helita Barreira Custódio asseverava, já nos idos de 1983 que "... o dano decorrente da atividade poluente tem como pressuposto básico a própria gravidade do acidente, ocasionando prejuízo patrimonial ou não patrimonial a outrem, independente de se tratar de risco permanente, periódico, ocasional ou relativo".

Vale trazer o alento de Sergio Cavalieri Filho, de que "... o dano é não somente o fato constitutivo mas, também, determinante do dever de indenizar"; bem como a lição de José Rubens Morato Leite, cuja concepção de dano ambiental, para ser classificada, deve levar em conta (1) a amplitude do bem protegido, (2) a reparabilidade e aos interesses jurídicos envolvidos, (3) a sua extensão, e (4) ao interesse objetivado.

A Política Nacional do Meio Ambiente (lei 6938/1981), já apontava em seu art. 3º, IV, o poluidor como responsável, direto ou indireto, pelas atividades degradantes (inc. III); sem esquecer que nos seus arts. 14 e 15 restaram fixadas diversas penalidades, aplicando-as, por equiparação, ao órgão ou autoridade pública competente que venha a se omitir. Nesse sentido, a tutela ambiental foi recrudescida com tantos outros diplomas que vieram a ser editados, v.g., lei de crimes ambientais (Lei 9605/1998) que em seu art. 2º já estampa "quem, de qualquer forma, concorrer ...".

Tal alento, sem dúvida, foi incorporado no Código Florestal (lei 12.651/12), em seus art. 2º, § 2º e art. 7º. Nas disposições gerais (art. 2º, § 2º) resta disciplinado que as obrigações previstas no diploma têm natureza real e transmitem-se a qualquer sucessor de posse ou domínio. Já no seu art. 7º, embora se refira ao "regime protetor das APP's", salvo melhor discernir, tem a virtude, pelas regras de hermenêutica (diálogo das fontes, teleologia, interpretação analógica, entre outras) de ratificar o que aqui se explora, é o que se depreende do seu § 2º. Para tanto, quer se crer que os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade sejam observados, sobretudo pela justeza que se deve ter entre meios e fins.

O legislador, ainda que a redação do texto seja questionável, ao atribuir à obrigação de reparar o dano, a natureza real, evidencia que o fez, precipuamente, para garantir que o dano ambiental não exima o novel adquirente (da posse ou do domínio), tampouco isente o alienante ou cedente (seja ele o causador, ou não).

Para reforçar, vê-se que no "caput do art. 7º", incluem-se os possuidores e ocupantes a qualquer título (locação, arrendamento, comodato, etc..), por isso parece acertada a "fórmula" obrigação real. Tal norma tem o condão de integrar ou aperfeiçoar os genéricos termos do art. 2º, § 2º do mesmo diploma. Portanto, infere-se que essa "solidariedade" decorre de lei (Código Florestal, é lei, material e formal), o que encontra assento no CC, art. 265 (fontes da solidariedade: lei, vontade das partes - contrato). Assim, ficam sujeitos à reparação, todos que entrem nas cadeias dominial ou possessória.

O que se justifica, com todo vigor, na percepção que se tutela a integridade do meio ambiente, por corolário, cuida de interesses difusos e coletivos, v.g.: dignidade da pessoa humana, em caráter transgeracional, intimamente ligada à higidez do meio ambiente (estabilidade ecológica - CF, art. 225), que assegura e viabiliza a sustentabilidade das relações civis e econômicas (CF, art. 170, VI). Para ratificar a envergadura da obrigação, observe-se a glosa normativa: ficam vedadas a outorga de novas licenças para supressão de vegetação, enquanto não recomposta a vegetação lesada (Código Florestal, art. 7º, § 3º).

 

3) Aquisição e suas vicissitudes

Há muito, diante da absurda insegurança na aquisição de imóveis no país, o STJ promulgou a súmula 375, cravando que "o reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente". (destacamos). Desta feita, já se exigia do adquirente a cautela mediana, razoável, tida pela análise de certidões pessoais do alienante no local da residência e da localização do imóvel, seguindo-se o alento do art. 792, § 2º do CPC. A partir da lei de registros públicos em 1973 (art. 247), passando pelo Código Civil de 2002 (arts. 521; 1.057 P. único; 1.063, §3º), lei 13.097/15 (art. 54) e à recente lei 14.825/24, conhecida como "marco das garantias", busca-se mitigar os riscos da aquisição de imóveis pelo princípio da concentração dos atos na matrícula registral, visto que, diante da capilaridade processual e fiscalizatória ambiental, a busca de certidões no país inteiro é tarefa hercúlea e praticamente inviável.

Mesmo assim, com todo esse corolário legislativo, na prática ainda não temos jurisprudência suficiente para "garantir segurança em adquirir" somente fundamentado em certidão de ônus da matrícula, é dizer, necessita-se de mais zelo e diligência. Assim, os recursos disponíveis aos adquirentes de boa-fé, para acautelar-se na sub-rogação de passivo ambiental, continuam escassos e não raro confusos. Nessa quadra, é possível inferir a necessidade de instrumentos cabais e convergentes à certificação jurídica da pessoa do alienante e do objeto do negócio. Com efeito, àquele que queira entrar na posse ou adquirir o domínio de certa área, há que adotar diligências acauteladoras, em recomendável "due diligence imobiliária" (auditoria, vistoria, certidões negativas em um plexo de órgãos públicos, revisões de cadeia possessória e/ou dominial, etc.), para garantir tanto a higidez e a prosperidade do negócio, quanto a isenção de responsabilidades.

 

4) Algumas conclusões

O instituto jurídico "passivo ambiental como obrigação propter rem", tem jaez acessório que está atrelado a um direito real. É obrigação real (tal qual positivada no Código Florestal), mas não de direito real (cuja fonte é o art. 1.225 do CC/2002), nem se cinge à obrigação personalíssima, pois que pode ser estender, por solidariedade, aos sucessores da posse e do domínio. Portanto, converge-se ao instituto "obrigação mista". Todos que, direta ou indiretamente, por ação ou omissão, concorreram ao ato danoso ambiental, ou ainda, que passaram pelas cadeias de domínio ou possessória, ficam sujeitos à reparação dos danos ambientais, justamente porque inexorável ao direito real da coisa (propriedade), há o "acessório" da obrigação de recuperar as lesões ali perpetradas (ou dali advindas).

O STJ havia sumulado o seguinte entendimento no verbete 623 (DJe. 17/12/18): "As obrigações ambientais possuem natureza propter rem, sendo admissível cobrá-las do proprietário ou possuidor atual e/ou dos anteriores, à escolha do credor." Porém, tal verbete foi ajustado, por conta do julgamento do REsp 1953359/SP (DJe 26/9/23), sob o regime de recurso repetitivo com o Tema 1204, de modo que o enunciado foi "aperfeiçoado": "As obrigações ambientais possuem natureza 'propter rem', sendo possível exigi-las, à escolha do credor, do proprietário ou possuidor atual, de qualquer dos anteriores, ou de ambos, ficando isento de responsabilidade o alienante cujo direito real tenha cessado antes da causação do dano, desde que para ele não tenha concorrido, direta ou indiretamente".

 

Frise-se que a obrigação "propter rem" não se extingue por mero ato de vontade das partes eventualmente contratantes, porque a fonte da obrigação é o próprio direito real sobre a coisa, de modo que a parte só está livre de ônus se, efetiva e comprovadamente, não concorreu com o dano ou com o seu dever de reparação (pode não ter sido o causador direto, mas passa a ser o indireto, por entrar na cadeia possessória/dominial).

Pecar nas diligências e cautelas, significa em coadunar com risco de adquirir coisa viciada e lesada (cujo "legado" acompanha o bem e prescinde da análise se ele seria terceiro de boa-fé) e anuir às sanções jurídicas e legais, já decretadas e ulteriores.

A natureza da infração e a envergadura da lesão ambiental devem ser devidamente perquiridas para que se visualize, ao final, se as obrigações daí decorrentes comportariam alguma forma de divisão ou não, conforme preceituam os arts. 257 e ss. do CC; ou ainda, alternativamente, se suscetíveis de compensação ou seguro ambientais, TAC ou mecanismos outros que o valham, sem esquecer, no entanto, a solidariedade acima ventilada, com base no art. 265 do CC e arts. 2º e 7º do Código Florestal.  

Na prática, enquanto não houver ampla e efetiva concentração dos atos, ao não se "compendiar ou apostilar" as obrigações ambientais propter rem, a pulverização da fiscalização ambiental (embora soe democrática e republicana, em retidão à autonomia administrativa de cada um dos órgãos de polícia administrativa), implica na fragilização do sistema de proteção ambiental e, de consequência, no "sistema" que incentive e dê segurança ao investidor, que pode ser tomado por desagradável, quiçá perniciosa, surpresa.

Noutro vértice, tais desencontros, confusões ou incertezas podem acarretar, ainda, em demandas judiciárias, com objetivo de exonerar ou responsabilizar, o jurisdicionado, em face das obrigações ambientais "propter rem", do que vale ressaltar que a complexidade probatória, entre outras particularidades, se agrava pelo curso do tempo, por possível perecimento - daí a importância da concentração dos atos na matrícula, o que atuaria em prol do "ad perpetuam rei memoriam".

Alvitra-se de suma importância, notadamente ao se tratar de bens ou direitos sobre imóveis - urbanos ou rurais; residenciais, comerciais ou industriais - que os atos jurídicos (administrativos e judiciais) sejam objeto de anotações no Fólio Imobiliário competente, louvando-se o caráter erga omnes da publicidade que lhe é peculiar, concentrando no Cartório de Imóveis as averbações e registros das "obrigações reais, propter rem". Do contrário, far-se-á necessária uma "exaustiva romaria", aos Cartórios Distribuidores, Ofícios Imobiliários, aos órgãos de polícia administrativa dos três entes federados, em seu plexo de secretarias e institutos.

Para rematar, pondere-se que a importância da "concentração dos atos na matrícula", mostra-se em retidão:

·        Princípios regentes do registro público imobiliário, da especificidade (objetiva e subjetiva) e da continuidade, no diapasão dos normativos específicos da lei 6015/1973, ex vi ao art. 246 e art. 167, II item 12;

·        Ditames da lei Federal 7433/1985, regulamentada pelo decreto Federal 93.240/1986 (que, em suma, disciplina a lavratura de escrituras públicas relativas a imóveis); e

·        Estado do Paraná, aos normativos do Código de Normas da eg. Corte Estadual - foro extrajudicial, a exemplo dos arts. 675, 684 e ss. (requisitos para lavratura de escrituras referentes a imóveis e direitos a eles relativos).

No que concerne aos negócios imobiliários envolvendo áreas rurais, ainda que inexista qualquer anotação na(s) matrícula(s), a prudência recomenda que tais atos devem contar, antecipadamente, com as certidões negativas ambientais, o que diz com os princípios da prevenção e do poluidor-pagador em face dos passivos ambientais, sobretudo com a "individualização da culpa" - seguranças jurídicas dos contratantes e da coletividade, como garantia da isenção de supostas responsabilidades. Seja em negócios envolvendo imóveis rurais ou urbanos, deve haver "ótimo diálogo" entre os sistemas e as plataformas, não só entre os entes federados, como entre estes e os Cartórios de Imóveis e de Notas (por analogia, operação semelhante com Detran, na venda de veículos).

 

·        Tabelião em Curitiba, escritor, professor de Pós Graduação da PUC-Pr., Ex presidente do Colégio Notarial do Brasil e Conselheiro Honorário da União Internacional do Notariado.

 

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